domingo, maio 4

Minha querida mãe




Acordei sem o teu beijo. É assim há, faz em Junho, 22 anos.

Despertei com as palavras a sufocarem-me o olhar. Como acontece de cada vez que te lembro com mais intensidade. Porque sabes bem, que estás sempre comigo, sinto-te a presença e a protecção constante. E a maior dor é a falta do teu abraço, do teu contacto, do teu aroma a lilases silvestres (chegaste a saber que se tornaram as minhas flores preferidas?). A falta do teu olhar doce e um pouco triste (a tua neta herdou esse olhar). Mas o que mais falta me faz é o teu sorriso, esse sorriso que te vinha da alma, o sorriso que tinhas até quando te apetecia chorar. Esse sorriso de um amor imensurável e incondicional. Essa capacidade de amar que te tornou numa mulher admirável e inesquecível por todos os que te conheciam. Não sei de ninguém que não te adorasse. Até o pai, homem rígido e difícil na forma como manifesta as emoções, ainda te lembra como A Mulher, única e insubstituível, apesar das tentativas, porque não sabe viver sozinho.
E és única.
Fui ao baú onde guardo alguns dos teus pertences: as cartas que me escrevias, quando eu ia de férias para a tua aldeia, os postais, os recados que me deixavas de manhã, quando ias trabalhar, os postais que te escrevia no Dia da Mãe, o teu relógio, as tuas jóias, entre tantas outras coisas que intensificam a tua presença, em mim, comigo.
No mesmo baú, guardo os cadernos onde me tentei libertar em palavras, todas as tentativas de poemas que te escrevi.
Porque gostavas de me ler, continuo a escrever...

E hoje, mais um dia em que as lágrimas deslizam rápidas e quentes. Não pela tua memória, mas por não estares aqui. Por tudo o que não fizeste. Pelo teu sofrimento tão imerecido. Pela vontade inexpugnável que tinhas, de viver. Pela tua partida precoce, embora anunciada. Pela dor e raiva com que fiquei, por me teres deixado assim...
Pois nem imaginas o que levaste de mim, quando partiste.

Daqui a pouco, num tributo à importância que davas aos simbolismos, às tradições, vou-te visitar ao local, onde repousam os teus ossos, o que resta de ti em matéria. E, tentar encontrar a tua flor preferida, a açucena branca.Tem sido difícil, mas eu vou tentando.

Sempre que a minha (má) gestão do tempo me permitir, voltarei a este espaço, que vou construindo, de memórias.

Apenas porque há memórias que são mais do que isso. E porque sabes que, para mim, recordar não é viver (lembras-te das nossas discussões? De como ficavas assustada com os meus argumentos e a minha intempestiva rebeldia?). Pois recordar é apenas, existir. As memórias são importantes, fundamentais até, no nosso percurso de vida. Desde que não nos prendam ao passado, e nos deixem continuar a viagem das descobertas. De nós e dos outros.

Um beijo e até já. Vou à procura da tua flor. E esconder as lágrimas da minha família, que me conhece sempre alegre.


Nota: A tua neta, num gesto de puro amor por alguém que só conhece de fotografias e de conversas, fez uma tatuagem com a tua flor preferida.

Mãe





Olhos de anjo
húmidos
de sal e
saudade.

Tenho saudades da minha Mãe
e do seu colo com sabor a paz.

O som espalha-se pela cidade
de néon
os passos
e os corpos.

Encerra-se o gesto
num tom de lilás
e anil
a melodia envolve
os sentidos
sem pressa
os passos
de cristal
o olhar.

A boca pêssego limão
o olhar morango mel
o corpo pétala branca
aroma
maçã mais doce
perfume laranja
e
então
uma palavra que não sei.

Regresso
vestida de negro
não luto
esta calma falsa
de sorrisos convenientes
este existir
sem ti Mãe.