nuvens de vento empurram o sol neste sotão de memórias, onde
te (res)guardo em caixas coloridas como matrioskas de ar maternal.
sento-me num caixote de madeira, deixando que a claridade
vença os recantos de todas as coisas guardadas de ti: postais, anéis, brincos,
colares e fios de ouro velho que não reluz agora, o teu bilhete de identidade,
o cartão da maternidade, algumas agendas (onde a tua letra me é tesouro) nos
recados que me deixavas (junto com o almoço já feito) na minha adolescência de
preguiça em férias, antes de saíres para o emprego.
encontro agora o teu passe de autocarro, recorto a tua
fotografia e deito-o fora. é assim, sempre que mexo nas tuas coisas, a tentar
ficar com o mais importante, o que para mim é tudo. mas é um exercício que
faço, para me tentar disciplinar a não ficar tão dependente de objectos que fazem parte da tua memória.
é difícil desfazer-me seja do que for teu. quando o pai
morreu, lá tive que dar os teus vestidos mais bonitos e o robe que ainda estava
pendurado atrás da porta, e outras coisas. guardo algumas écharpes e lenços,
que não usarei, porque não gosto, mas têm ainda o teu perfume, até porque estão
junto com alguns sabonetes Camay (penso que americanos, com que o pai sempre te
inundava e que tu recebias com o entusiasmo de uma primeira vez).
sabes (claro que sabes) já sou avó, ou seja sou mãe outra
vez e tu continuas longe e eu sinto-me sempre solitária quando é a tua memória
que me faz companhia.
dou corda a um dos teus relógios de pulso, com
esperança que o tempo volte para trás e tu te materializes aqui na minha
frente, a tentares fazer ao mesmo tempo mil e uma coisas enquanto me mimas e me
beijas prendendo com uma rapidez hábil a bracelete do relógio, esse relógio
antigo de tantas horas que guarda, assim o meu amor numa ampulheta de tempo, em
que a areia se recusa a deslizar à velocidade desejada que é parada para que
não tenha que te recordar com medo de te esquecer.