sabes onde descobrir-me, enrolada em mim, sabes onde fico
presa,enredada em teares de seda pura,em sonhos devolutos e madrugadas de
abril vermelho,o mesmo das papoilas que baloiçam ao vento que insiste em
levar-me,nua, despida com ternura, de mãos cheias de chuva e pele alva de neve
azul.
a mesma com que me abraças à distância dum rio cor de mar e
musgo.
e então, sorrio à dor que ainda não é morte. talvez sorte.de principiante,mesmo repetente.ausente, dúvida latente. dívida carente.fermento,adubo, presente.
Dá-me a mão, senta-te comigo junto ao lago dos cisnes, que
perdura no bailado do meu olhar.
Dá-me a mão, enquanto percorremos a Marginal, ao som das tuas
escolhas que me cativaram. A tua mão esquerda no volante e a música acelerada
como o meu coração.
Dá-me a mão, sempre a direita, quando passeamos pelas
Avenidas e deixas nos passeios, aroma a baunilha e nos meus lábios, o sabor a cigarrilhas
(que agora fumo).
Lembra-te das palavras que moram nos livros, dança ao som das
canções que me ofereceste, e viaja até onde a imaginação te levar.
Dá-me a mão. E abriga-te comigo, aqui, comigo. Dentro no
meu peito. Nesta mistura de calor de pele, onde flutuo para além de ti.
Náufraga desse teu after shave inebriante, presa no teu
sorriso de olhos fechados.
A tua voz fere como a noite mais solitária, quando saio
para a rua deserta e danço ao ritmo da chuva.
Vislumbro-te ao longe, sem seres sombra ou apenas silhueta.
Então abrigo-me.E já não choro. Apenas reconheço a
simplicidade da imensidão.
Cântico final com(o) prata oculta, sa(n)gra(n)do o dia de expiação em que decido morrer, num abandono exacto em soluços incandescentes, esculpindo memórias despidas de aromas, apenas gravadas a fogo no peito desajeitado pelo horizonte longínquo, em que te sei ávido das minhas formas, como eu da tua alma.
Danço então, até o rubor das faces iluminar os jardins proibidos, onde te seduzo em troca da tua voz de anjo numa inquietude erótica e mortal, que é esta paixão faminta, numa cadência sôfrega e insaciável, como os amores distantes que ecoam nas cartas guardadas, amarrotadas e lançadas ao mar, ondulando até submergirem patéticas e solitárias (como todas as cartas de despedida da vida e dos amores que se despem) abandonados num labirinto de verbos inflamados de violetas desfeitas pelo beijo violento.
Saio assim de mim, a tentar inventar um novo silêncio que se estenda até à música, que será tudo o que levo, ao fechar-me comigo, trancando-me por dentro, na praia onde o piano descansa, elevando-me aos céus, para que saibas que é chôro, quando a chuva te refrescar o rosto cansado, por tanto que me procuras.
Quero falar-te de um filme a preto & branco, em que fomos
protagonistas, em tardes escaldantes de desejos ansiados.
Há tanto tempo, que nem sei se foi realidade ou ficção.
O meu peito albergava então, uma força indomável, uma sede dos teus lábios,
que nunca saciei.
O teu olhar magnético prendia-me não só o olhar, mas também os gestos que
sempre fluem para ti. Ainda agora.
Em mim
mora agora o vazio da cidade, despida de ti.
Da tua
memória, apenas as luzes de néon, numa espécie de vestígio, que se agitam numa
quase musicalidade e me incitam, quase todas as noites, a descer para a rua, em
busca de ti.
Não foi o olhar que evitou o meu, foi o murmúrio de uma sedução adocicada, quando eu cheguei,atrasada, desencontrada, despenteada, meia perdida.
Envergonhada.
Senti-me num filme em realidade paralela, e noutra dimensão para além da liquidez dos sentidos.Encurtei conversas,partilhei segredos, até recear ter falado demais. Fez-me doer.Especialmente quando o silêncio me causou vertigens num reflexo onde ainda hoje não me consigo ver.
Senti-me a arder pela ausência de momentos tão longos de silêncio.
Depois uma distância, que é mágoa inapelável, num labirinto de pálpebras fechadas onde me deito sem dormir.
Sempre que se despediam, demoravam os olhares nos lábios de
cada um,como que a pedir beijos, antes roubados, salgados,como se a dor de os
mordiscar fosse doce. E imprescindível.
A chuva na terra, em tempestades de relâmpagos trovões e
apagões, deixa um cheiro a fecundação precoce.
Enlaça-a pela cintura, para que o vento não a leve, leve agitar
de sacudir de ombros.A decalcar-lhe a mão no braço,como marca de posse.
Ela tenta libertar-se numa quase dança,deixando que a chuva
lhe amarrote a túnica étnica que lhe cobre os tornozelos,e lhe faça escorrer
os cabelos e o olhar húmido de desejo escondido.
O hálito perfumado do novo tabaco de cachimbo,ficou colado
na boca dela,depois de lhe ter pressionado suavemente os lábios, como que a saborear-lhe
a memória dos sempre apetecidos.
Ela não diz nada,saboreia o perfume intenso, cerra os olhos
a tentar libertar-se deste amor.
Paladar de baunilha, tanto doce de aroma e cor. Amarelo.
A chuva há-de voltar, e entre trovões e relâmpagos, hás-de
beijar-me nesse regresso adiado, hás-de tomar-me num abraço rodopiante,
entornar-me de novo os sentidos,fingirmos que não somos indiferentes, quando
apenas estamos diferentes.
Uma sala com um cadeirão de tecido, na mesa uma bandeja com
um copo. Um cinzeiro desperta a atenção. Alguém sentado a esfumaçar, olhando o
infinito que é finito através da janela de reposteiros abertos. Alguém que
entra e enche o copo ‘on the rocks’.
O homem sentado não se mexe, apenas insiste no gesto
habitual de fumar. O olhar parece perdido, mas está atento. Vigilante. Espera
alguém. Sem esperar.
A sala é elegante,
com o toque minimalista de quem está de passagem. Mesmo quando sente falta do
conforto das coisas a que chama suas. Pedaços de guardanapos de papel
rabiscados. Livros com dedicatórias. Os vinis (con)sagrados...
Repousa o olhar sobre as caixas de cigarrilhas das marcas
que experimentou, até se decidir. De acordo com o temperamento inquieto da
mente.
Entre alguns objectos, os presentes que comprou e não lhe
chegou a oferecer.
Resquícios das viagens que fez. Tenta lembrar-se das que
idealizou fazer com ela.
Num movimento de
nostalgia adiada levanta-se. Depois de pousar a cigarrilha a meio fumo, corre
os reposteiros, pesados de um veludo azul, na penumbra em busca de uma determinada intimidade. Fica estático a ouvir os sons de uns
saltos apressados, a tocarem ao de leve a calçada portuguesa. Reconhece o som. Abre então os reposteiros e encosta a cabeça à janela.
Na rua, o trânsito
insinua-se intenso, nesta hora de lusco-fusco. Rápida a sombra da silhueta que
tão bem conhece. Esguia num equilíbrio circense sobre uns saltos com que já fantasiou
noites. Ou tardes como esta que cai, sem anúncio.
Retira os botões de punho, dobrando as mangas da camisa. Sente
o aroma do after shave a esvoaçar e fica
contente por ter decidido usar o que ela gosta. Apesar de adivinhar que o preferia de barba suave, quando em toques de quase volúpia, lhe acaricia o rosto.
Viaja ao ritmo dos
saltos altos a baterem na entrada do prédio, agora num som mais audível, mais
perto.As memórias são como os maços de cigarro que ela fuma e tem a mania de
amarrotar naquelas mãos tão finas e tão poderosas. Amarota-os duma só vez,
embora fique algum tempo a brincar com o maço, na mão esquerda, enquanto
termina o último cigarro. Lembra-se tão bem da última vez. Há tanto tempo.
Quando conseguiu que ela experimentasse uma cigarrilha. As gargalhadas que
deram, com as expressões que ela fez…
…A primeira vez. Ela estava nua, desafiando-o com toda a
feminilidade num corpo elegante, quase acutilante. como o olhar felino com que
o enfeitiçara. Ali naquela sala.
Lembra-se de ter fechado os reposteiros, de um azul
semelhante ao veludo da pele que descobriria mais tarde centímetro a
centímetro, num afogar de arrepios.
Era uma tarde de sol.
Lembra-se porque o corpo exposto, mas não oferecido,
encandeou-o com o reflexo do sol nos cabelos louros espalhados. Sol que os
reposteiros mal fechados deixavam descobrir toda as cores que o calor daquele
corpo lhe provocara. Febre. A arder.
Experimentaram-se, depois de tanto tempo a desejarem-se.Mesmo
fingindo que não.
Experimentaram-se, vestindo-se um do outro, na nudez que
seria pele e coxas. E sexos oscilantes, ansiosos pela explosão dos caminhos proibidos,
onde se saborearam.No fim, cada um sabia ao gosto do outro.