sexta-feira, agosto 6

Pausa

 


Uma sala com um cadeirão de tecido, na mesa uma bandeja com um copo. Um cinzeiro desperta a atenção. Alguém sentado a esfumaçar, olhando o infinito que é finito através da janela de reposteiros abertos. Alguém que entra e enche o copo ‘on the rocks’.

O homem sentado não se mexe, apenas insiste no gesto habitual de fumar. O olhar parece perdido, mas está atento. Vigilante. Espera alguém. Sem esperar.

A sala é elegante, com o toque minimalista de quem está de passagem. Mesmo quando sente falta do conforto das coisas a que chama suas. Pedaços de guardanapos de papel rabiscados. Livros com dedicatórias. Os vinis (con)sagrados...

Repousa o olhar sobre as caixas de cigarrilhas das marcas que experimentou, até se decidir. De acordo com o temperamento inquieto da mente.

Entre alguns objectos, os presentes que comprou e não lhe chegou a oferecer.

Resquícios das viagens que fez. Tenta lembrar-se das que idealizou fazer com ela.

Num movimento de nostalgia adiada levanta-se. Depois de pousar a cigarrilha a meio fumo, corre os reposteiros, pesados de um veludo azul, na penumbra em busca de uma determinada intimidade. Fica estático a ouvir os sons de uns saltos apressados, a tocarem ao de leve a calçada portuguesa. Reconhece o som. Abre então os reposteiros e encosta a cabeça à janela.

Na rua, o trânsito insinua-se intenso, nesta hora de lusco-fusco. Rápida a sombra da silhueta que tão bem conhece. Esguia num equilíbrio circense sobre uns saltos com que já fantasiou noites. Ou tardes como esta que cai, sem anúncio.

Retira os botões de punho, dobrando as mangas da camisa. Sente o aroma do after shave a esvoaçar e fica contente por ter decidido usar o que ela gosta. Apesar de adivinhar que o preferia de barba suave, quando em toques de quase volúpia, lhe acaricia o rosto.

Viaja ao ritmo dos saltos altos a baterem na entrada do prédio, agora num som mais audível, mais perto. As memórias são como os maços de cigarro que ela fuma e tem a mania de amarrotar naquelas mãos tão finas e tão poderosas. Amarota-os duma só vez, embora fique algum tempo a brincar com o maço, na mão esquerda, enquanto termina o último cigarro. Lembra-se tão bem da última vez. Há tanto tempo. Quando conseguiu que ela experimentasse uma cigarrilha. As gargalhadas que deram, com as expressões que ela fez…

…A primeira vez. Ela estava nua, desafiando-o com toda a feminilidade num corpo elegante, quase acutilante. como o olhar felino com que o enfeitiçara. Ali naquela sala.

Lembra-se de ter fechado os reposteiros, de um azul semelhante ao veludo da pele que descobriria mais tarde centímetro a centímetro, num afogar de arrepios.

Era uma tarde de sol.

Lembra-se porque o corpo exposto, mas não oferecido, encandeou-o com o reflexo do sol nos cabelos louros espalhados. Sol que os reposteiros mal fechados deixavam descobrir toda as cores que o calor daquele corpo lhe provocara. Febre. A arder.

Experimentaram-se, depois de tanto tempo a desejarem-se. Mesmo fingindo que não.

Experimentaram-se, vestindo-se um do outro, na nudez que seria pele e coxas. E sexos oscilantes, ansiosos pela explosão dos caminhos proibidos, onde se saborearam. No fim, cada um sabia ao gosto do outro.

[E 

minha solidão é 

uma aresta espetada no meu peito.]

4 comentários:

L. Lopes disse...

bebo cada palavra como se elas tivessem o gosto do prazer que está espalhado no silêncio espalhado no desejo pensado em cada uma e todas as noites em que os reposteiros azuis foram testemunhas dos corpos unidos numa nudez fogosa.

bebo cada palavra como se elas fossem a centelha que me alumia o caminho para chegar a ti.

L.L

Anónimo disse...

De perder o fôlego. Simplesmente de perder o fôlego.

Von

Parapeito disse...

Olá linda.
Sempre muito bom, passe o tempo que passar "beber" as tuas palavras neste deserto que é o teu oásis.
Gosto de ter ler.
Bom "vermo-nos" por aqui.
ainda existem blogs que teimam em continuar.
Vou passando por cá, Gostei de te ver no Parapeito.
Abraço e brisas doces **

Parapeito disse...

Voltei :) para dizer que a música é o máximo **