Uma sala com um cadeirão de tecido, na mesa uma bandeja com um copo. Um cinzeiro desperta a atenção. Alguém sentado a esfumaçar, olhando o infinito que é finito através da janela de reposteiros abertos. Alguém que entra e enche o copo ‘on the rocks’.
O homem sentado não se mexe, apenas insiste no gesto
habitual de fumar. O olhar parece perdido, mas está atento. Vigilante. Espera
alguém. Sem esperar.
A sala é elegante,
com o toque minimalista de quem está de passagem. Mesmo quando sente falta do
conforto das coisas a que chama suas. Pedaços de guardanapos de papel
rabiscados. Livros com dedicatórias. Os vinis (con)sagrados...
Repousa o olhar sobre as caixas de cigarrilhas das marcas
que experimentou, até se decidir. De acordo com o temperamento inquieto da
mente.
Entre alguns objectos, os presentes que comprou e não lhe
chegou a oferecer.
Resquícios das viagens que fez. Tenta lembrar-se das que
idealizou fazer com ela.
Num movimento de
nostalgia adiada levanta-se. Depois de pousar a cigarrilha a meio fumo, corre
os reposteiros, pesados de um veludo azul, na penumbra em busca de uma determinada intimidade. Fica estático a ouvir os sons de uns
saltos apressados, a tocarem ao de leve a calçada portuguesa. Reconhece o som. Abre então os reposteiros e encosta a cabeça à janela.
Na rua, o trânsito
insinua-se intenso, nesta hora de lusco-fusco. Rápida a sombra da silhueta que
tão bem conhece. Esguia num equilíbrio circense sobre uns saltos com que já fantasiou
noites. Ou tardes como esta que cai, sem anúncio.
Retira os botões de punho, dobrando as mangas da camisa. Sente
o aroma do after shave a esvoaçar e fica
contente por ter decidido usar o que ela gosta. Apesar de adivinhar que o preferia de barba suave, quando em toques de quase volúpia, lhe acaricia o rosto.
Viaja ao ritmo dos
saltos altos a baterem na entrada do prédio, agora num som mais audível, mais
perto. As memórias são como os maços de cigarro que ela fuma e tem a mania de
amarrotar naquelas mãos tão finas e tão poderosas. Amarota-os duma só vez,
embora fique algum tempo a brincar com o maço, na mão esquerda, enquanto
termina o último cigarro. Lembra-se tão bem da última vez. Há tanto tempo.
Quando conseguiu que ela experimentasse uma cigarrilha. As gargalhadas que
deram, com as expressões que ela fez…
…A primeira vez. Ela estava nua, desafiando-o com toda a
feminilidade num corpo elegante, quase acutilante. como o olhar felino com que
o enfeitiçara. Ali naquela sala.
Lembra-se de ter fechado os reposteiros, de um azul
semelhante ao veludo da pele que descobriria mais tarde centímetro a
centímetro, num afogar de arrepios.
Era uma tarde de sol.
Lembra-se porque o corpo exposto, mas não oferecido,
encandeou-o com o reflexo do sol nos cabelos louros espalhados. Sol que os
reposteiros mal fechados deixavam descobrir toda as cores que o calor daquele
corpo lhe provocara. Febre. A arder.
Experimentaram-se, depois de tanto tempo a desejarem-se. Mesmo
fingindo que não.
Experimentaram-se, vestindo-se um do outro, na nudez que
seria pele e coxas. E sexos oscilantes, ansiosos pela explosão dos caminhos proibidos,
onde se saborearam. No fim, cada um sabia ao gosto do outro.
[E
a
minha solidão é
uma aresta espetada no meu peito.]