Não foi o olhar que evitou o meu, foi o murmúrio de uma sedução adocicada, quando eu cheguei,atrasada, desencontrada, despenteada, meia perdida.
Envergonhada.
Senti-me num filme em realidade paralela, e noutra dimensão para além da liquidez dos sentidos.Encurtei conversas,partilhei segredos, até recear ter falado demais. Fez-me doer.Especialmente quando o silêncio me causou vertigens num reflexo onde ainda hoje não me consigo ver.
Senti-me a arder pela ausência de momentos tão longos de silêncio.
Depois uma distância, que é mágoa inapelável, num labirinto de pálpebras fechadas onde me deito sem dormir.
Sempre que se despediam, demoravam os olhares nos lábios de
cada um,como que a pedir beijos, antes roubados, salgados,como se a dor de os
mordiscar fosse doce. E imprescindível.
A chuva na terra, em tempestades de relâmpagos trovões e
apagões, deixa um cheiro a fecundação precoce.
Enlaça-a pela cintura, para que o vento não a leve, leve agitar
de sacudir de ombros.A decalcar-lhe a mão no braço,como marca de posse.
Ela tenta libertar-se numa quase dança,deixando que a chuva
lhe amarrote a túnica étnica que lhe cobre os tornozelos,e lhe faça escorrer
os cabelos e o olhar húmido de desejo escondido.
O hálito perfumado do novo tabaco de cachimbo,ficou colado
na boca dela,depois de lhe ter pressionado suavemente os lábios, como que a saborear-lhe
a memória dos sempre apetecidos.
Ela não diz nada,saboreia o perfume intenso, cerra os olhos
a tentar libertar-se deste amor.
Paladar de baunilha, tanto doce de aroma e cor. Amarelo.
A chuva há-de voltar, e entre trovões e relâmpagos, hás-de
beijar-me nesse regresso adiado, hás-de tomar-me num abraço rodopiante,
entornar-me de novo os sentidos,fingirmos que não somos indiferentes, quando
apenas estamos diferentes.
Uma sala com um cadeirão de tecido, na mesa uma bandeja com
um copo. Um cinzeiro desperta a atenção. Alguém sentado a esfumaçar, olhando o
infinito que é finito através da janela de reposteiros abertos. Alguém que
entra e enche o copo ‘on the rocks’.
O homem sentado não se mexe, apenas insiste no gesto
habitual de fumar. O olhar parece perdido, mas está atento. Vigilante. Espera
alguém. Sem esperar.
A sala é elegante,
com o toque minimalista de quem está de passagem. Mesmo quando sente falta do
conforto das coisas a que chama suas. Pedaços de guardanapos de papel
rabiscados. Livros com dedicatórias. Os vinis (con)sagrados...
Repousa o olhar sobre as caixas de cigarrilhas das marcas
que experimentou, até se decidir. De acordo com o temperamento inquieto da
mente.
Entre alguns objectos, os presentes que comprou e não lhe
chegou a oferecer.
Resquícios das viagens que fez. Tenta lembrar-se das que
idealizou fazer com ela.
Num movimento de
nostalgia adiada levanta-se. Depois de pousar a cigarrilha a meio fumo, corre
os reposteiros, pesados de um veludo azul, na penumbra em busca de uma determinada intimidade. Fica estático a ouvir os sons de uns
saltos apressados, a tocarem ao de leve a calçada portuguesa. Reconhece o som. Abre então os reposteiros e encosta a cabeça à janela.
Na rua, o trânsito
insinua-se intenso, nesta hora de lusco-fusco. Rápida a sombra da silhueta que
tão bem conhece. Esguia num equilíbrio circense sobre uns saltos com que já fantasiou
noites. Ou tardes como esta que cai, sem anúncio.
Retira os botões de punho, dobrando as mangas da camisa. Sente
o aroma do after shave a esvoaçar e fica
contente por ter decidido usar o que ela gosta. Apesar de adivinhar que o preferia de barba suave, quando em toques de quase volúpia, lhe acaricia o rosto.
Viaja ao ritmo dos
saltos altos a baterem na entrada do prédio, agora num som mais audível, mais
perto.As memórias são como os maços de cigarro que ela fuma e tem a mania de
amarrotar naquelas mãos tão finas e tão poderosas. Amarota-os duma só vez,
embora fique algum tempo a brincar com o maço, na mão esquerda, enquanto
termina o último cigarro. Lembra-se tão bem da última vez. Há tanto tempo.
Quando conseguiu que ela experimentasse uma cigarrilha. As gargalhadas que
deram, com as expressões que ela fez…
…A primeira vez. Ela estava nua, desafiando-o com toda a
feminilidade num corpo elegante, quase acutilante. como o olhar felino com que
o enfeitiçara. Ali naquela sala.
Lembra-se de ter fechado os reposteiros, de um azul
semelhante ao veludo da pele que descobriria mais tarde centímetro a
centímetro, num afogar de arrepios.
Era uma tarde de sol.
Lembra-se porque o corpo exposto, mas não oferecido,
encandeou-o com o reflexo do sol nos cabelos louros espalhados. Sol que os
reposteiros mal fechados deixavam descobrir toda as cores que o calor daquele
corpo lhe provocara. Febre. A arder.
Experimentaram-se, depois de tanto tempo a desejarem-se.Mesmo
fingindo que não.
Experimentaram-se, vestindo-se um do outro, na nudez que
seria pele e coxas. E sexos oscilantes, ansiosos pela explosão dos caminhos proibidos,
onde se saborearam.No fim, cada um sabia ao gosto do outro.
E
no silêncio metálico da solidão, o prenúncio da falta de ar.
Precisa respirar o sol, mas só consegue absorver a
ferrugem do luar de agosto. E já em outubro, esperando milagres.A própria
imagem esbatida, desfocada no espelho.
A pele da alma é indescritivelmente doce.O corpo
ascende ao céu.
Dor nos lábios, de tanto os fechar para não gritar.
Perdeu a fome, esqueceu a sede e
imagina apenas a boca dele a sorrir.
De saudade?
Todos os dias, de olhos
rasgados pelas feridas que não cicatrizam,se
esvai em sangue,o corpo dobrado em náuseas violentas, dores internas
vomitadas, num
início de viagem que a transporta para outro universo.
É de chumbo, a falsa sensação de
leveza.A inconstância dos passos levou-a até
lá, ao lugar dos olhos húmidos,
deixando-a ficar adormecida nas memórias dos abraços.
Tanto tempo. Tanto.E nem mesmo assim, tentou secar os
olhos dela com as suas mãos de abandono de despedidas disfarçadas.
Naquele fim de tarde, ela
finalmente chorou, afAgando-o numa incerta precisão.
Ficaram alguns minutos naquele contacto visual, a trincar os
cubos de gelo, mas era mais o vidro fino do copo que ela sentia a entrar-lhe na boca, do que o líquido.
Toco-te.
Seiva arrepiada no toque das
palavras.
EU disse FICA. Acho que TU não ouviste.
Ficámos a tomar a
nossa cerveja. Estupidamente gelada.
e naquele
dia o teu olhar foi o princípio do (a)mar desenfreado,em constantes encontros
que eram sempre breves. ausência vítrea na capela isolada. corpos vestidos de
desejos nus. almas cúmplices de olhares que beijam.fugazes.fugidios.audazes.por vezes incapazes.eutanásia cega de sentidos.morri de pé como os soldados
cegos, enganados pela vitória que se misturava com o gás nas trincheiras.
trazes nos
cabelos, o vento da minha liberdade inquieta.eco de gritos surdos ou agudos, já
nem me lembro bem.apenas te sei devoluto. presente abandonado.não me vês, porque
não me olhas.(sor)rio ondulante de secura extrema. árvore tombada de raiz nua.sou ave
presa. sou pressa, sou poema que escreveste, na véspera daquele dia.
Voltei a escrever sobre mim,nos cadernos antigos, de capa preta que guardava em lugares ocultos,e quase me comovo, por não reconhecer
depois, a minha letra.
O vento que faz esvoaçar as folhas, traz um aroma a baunilhae os beijos que lá guardo, de sabores vários,imperceptíveis a todos os palatos,
excepto ao meu.
Dos teus lábios perfumados,tatuados na minha pele.
Quando me deixava morder ao de leve,sentindo-te.
S a b e n d o - t e.
Degustando-te poro a poro, num envolvimento de almasnos
corpos invisíveis.
Engolir-te em rajadas respiradas num sufoco de quase dor.
Toco-te.
E trago comigo todos os aromas, sabores e cores que
já foram.