quarta-feira, setembro 1

Cheiro a terra molhada


Foto CM
 

Sempre que se despediam, demoravam os olhares nos lábios de cada um, como que a pedir beijos, antes roubados, salgados, como se a dor de os mordiscar fosse doce. E imprescindível.

A chuva na terra, em tempestades de relâmpagos trovões e apagões, deixa um cheiro a fecundação precoce.

Enlaça-a pela cintura, para que o vento não a leve, leve agitar de sacudir de ombros. A decalcar-lhe a mão no braço, como marca de posse.

Ela tenta libertar-se numa quase dança, deixando que a chuva lhe amarrote a túnica étnica que lhe cobre os tornozelos, e lhe faça escorrer os cabelos e o olhar húmido de desejo escondido.

O hálito perfumado do novo tabaco de cachimbo, ficou colado na boca dela, depois de lhe ter pressionado suavemente os lábios, como que a saborear-lhe a memória dos sempre apetecidos.

Ela não diz nada, saboreia o perfume intenso, cerra os olhos a tentar libertar-se deste amor.

Paladar de baunilha, tanto doce de aroma e cor. Amarelo.

A chuva há-de voltar, e entre trovões e relâmpagos, hás-de beijar-me nesse regresso adiado, hás-de tomar-me num abraço rodopiante, entornar-me de novo os sentidos, fingirmos que não somos indiferentes, quando apenas estamos diferentes.


quinta-feira, agosto 26

Today

 



Olhar marejado de ausência

trovoada de corpos (s)em almas

pena_das

palavras não ditas.

 

O chão que nos falta, o céu que nos protege

___________ adocicado o chá do deserto.

 

Retomo o silêncio no aroma antigo de cigarrilhas que já não fumo,

fogo  claro no excessivo da luz

em águas mornas da fluidez dos dias,

como no início do mundo

a gestação das tardes finitas,

noites que não chegam

mas tombam,

no lodo do meu peito

lama desenhada esquina

na desfaçatez do deslumbre ignorado.


Sangue seco, enfim.


sábado, agosto 14

Another Night In


 

Vê-o desesperado com o coração nas mãos

tão longe do sorriso que lhe era feição

(n)a ausência de batimentos, a transpirar medo dos beijos por sentir

longe de si próprio, a respirar orvalhos de manhãs submersas, distantes as lágrimas escondidas

inquietantes as mãos por dar

vê-o e sente-o a perder-se, sem o perder de vista

sem o perder de si

vê-o em poemas por escrever

sento-o quando o chão quase lhe falta

ampara-o no silêncio da dor

música de encantar

num vazio quase crepuscular.


Então resgata-o

sentada na margem das suas histórias

sem  o deixar afogar.

sexta-feira, agosto 6

Pausa

 


Uma sala com um cadeirão de tecido, na mesa uma bandeja com um copo. Um cinzeiro desperta a atenção. Alguém sentado a esfumaçar, olhando o infinito que é finito através da janela de reposteiros abertos. Alguém que entra e enche o copo ‘on the rocks’.

O homem sentado não se mexe, apenas insiste no gesto habitual de fumar. O olhar parece perdido, mas está atento. Vigilante. Espera alguém. Sem esperar.

A sala é elegante, com o toque minimalista de quem está de passagem. Mesmo quando sente falta do conforto das coisas a que chama suas. Pedaços de guardanapos de papel rabiscados. Livros com dedicatórias. Os vinis (con)sagrados...

Repousa o olhar sobre as caixas de cigarrilhas das marcas que experimentou, até se decidir. De acordo com o temperamento inquieto da mente.

Entre alguns objectos, os presentes que comprou e não lhe chegou a oferecer.

Resquícios das viagens que fez. Tenta lembrar-se das que idealizou fazer com ela.

Num movimento de nostalgia adiada levanta-se. Depois de pousar a cigarrilha a meio fumo, corre os reposteiros, pesados de um veludo azul, na penumbra em busca de uma determinada intimidade. Fica estático a ouvir os sons de uns saltos apressados, a tocarem ao de leve a calçada portuguesa. Reconhece o som. Abre então os reposteiros e encosta a cabeça à janela.

Na rua, o trânsito insinua-se intenso, nesta hora de lusco-fusco. Rápida a sombra da silhueta que tão bem conhece. Esguia num equilíbrio circense sobre uns saltos com que já fantasiou noites. Ou tardes como esta que cai, sem anúncio.

Retira os botões de punho, dobrando as mangas da camisa. Sente o aroma do after shave a esvoaçar e fica contente por ter decidido usar o que ela gosta. Apesar de adivinhar que o preferia de barba suave, quando em toques de quase volúpia, lhe acaricia o rosto.

Viaja ao ritmo dos saltos altos a baterem na entrada do prédio, agora num som mais audível, mais perto. As memórias são como os maços de cigarro que ela fuma e tem a mania de amarrotar naquelas mãos tão finas e tão poderosas. Amarota-os duma só vez, embora fique algum tempo a brincar com o maço, na mão esquerda, enquanto termina o último cigarro. Lembra-se tão bem da última vez. Há tanto tempo. Quando conseguiu que ela experimentasse uma cigarrilha. As gargalhadas que deram, com as expressões que ela fez…

…A primeira vez. Ela estava nua, desafiando-o com toda a feminilidade num corpo elegante, quase acutilante. como o olhar felino com que o enfeitiçara. Ali naquela sala.

Lembra-se de ter fechado os reposteiros, de um azul semelhante ao veludo da pele que descobriria mais tarde centímetro a centímetro, num afogar de arrepios.

Era uma tarde de sol.

Lembra-se porque o corpo exposto, mas não oferecido, encandeou-o com o reflexo do sol nos cabelos louros espalhados. Sol que os reposteiros mal fechados deixavam descobrir toda as cores que o calor daquele corpo lhe provocara. Febre. A arder.

Experimentaram-se, depois de tanto tempo a desejarem-se. Mesmo fingindo que não.

Experimentaram-se, vestindo-se um do outro, na nudez que seria pele e coxas. E sexos oscilantes, ansiosos pela explosão dos caminhos proibidos, onde se saborearam. No fim, cada um sabia ao gosto do outro.

[E 

minha solidão é 

uma aresta espetada no meu peito.]

terça-feira, julho 27

Puisque tu me vois d'en haut


 

Desfoco-me nesta inalação de sol

de água salgada e nudez milagrosa

 

O luar de agosto em julho

orgulho a rimar com saudade

 ou desgosto

Epifania contínua

esguia

esquiva

 

Num somatório de dias solitários

raras as tardes que não anoitecem

e me apunhalam

o ventre dorido de tanto parir dores

 

e eu

quase vazia de ternuras e

 

a-d-o-c-i-c-a-d-o-s

predicados

 

quase vazia de palavras

apenas a música que se insinua

ainda me habita

e este amor amassado pelo abraço distante.


domingo, julho 18

Fly by Night

 



Desenho-te nas ondas

com estes dedos de  marés vivas de espanto

a distância é o lugar onde a saudade se demora

(n)à flor dos lábios

 

o olhar inquieto de todas as interrogações

cem respostas

numa urgência infantil de toques de asas,

como a migração das almas

maceradas pelas cores

[ou beijos?]

 

sorri(s)o  sacro, quando te sinto em mim

i n e q u í v o c o,

como o perfume das manhãs iluminadas, quando chegas.


terça-feira, junho 15

Johnny & Mary

 


Escrevo-te

no (in)verso do poema onde a solidão de ti me habita,

tu estás lá (estás?)

e, no cetim de um leito que não mereço,

existe o vazio

do sorriso fechado

desenha(n)do no meu corpo pálido,

palavras rotineiras, sacramentais, vazias.

 

Sentada no banco da Avenida,

abrando o coração acelerado de memórias

hesito no caminho a seguir,

fecho-me por dentro

numa tentativa de verão tardio

nesta espera de abandono, porque nem sei se virás

olhar-me nos olhos e perdoar-me o carácter,

nesta escuridão de silêncio excessivo,

provocador e mastigóforo.

 

E sem insistência,

a noite tomba nas minhas mãos de ninhos vazios

suspiro, inspiro, respiro enfim.